Nuno Camarneiro: em rigor da escrita

Um recente desafio profissional levou-me à leitura da obra de Nuno Camarneiro. Dessa leitura saltou-me à vista algumas características que demorei a conseguir sintetizar numa expressão ou palavra. E, ainda assim, não me parece a mais adequada, apenas a que, na minha insuficiência leitora, mais se aproxima. A palavra é rigor.
Primeiro, há um rigor formal. Atenção, não confundir com rigidez. Não. O rigor passa pelo respeito inequívoco pela opção formal escolhida para cada narrativa, seja o hotel de Se eu fosse chão, seja o prédio de Debaixo de Algum Céu. E esta breve reflexão centra-se apenas nestes dois textos.
O que me chamou a atenção foi como nestes dois textos as estruturas físicas dos edifícios são o elemento organizador da prosa, num rigor de fazer inveja a muitos engenheiros e arquitectos. O que advém, provavelmente, da formação cientifica do autor.
Há uma construção – diria que uma grelha de contornos bem definidos – que o autor vai recheando de pormenores e histórias vividos por personagens, na sua maioria quotidianas, com as quais é fácil identificarmos-nos. E embora possamos pensar que, ao definir a priori as características das células dessa grelha, o seu resultado seja monótono, desenganemos-nos.
Deixem-me tornar-vos mais explicita esta minha leitura. Este é o modo como visualizo as duas narrativas:
Hotel Avenida Palace
(Se eu fosse Chão)
2015
301
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Área de Serviço
1956
201
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206
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209
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215
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217
1928
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106
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108
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110
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116
117
Átrio / Recepção

(Debaixo de) Algum céu
Horizonte
3º Esq.
3º Dtº
2º Esq.
2º Dtº
1º Esq.
1º Dtº
Mar
R/c Esq.
R/c Dtº
Praia
c/v
c/v

A partir desta organização formal, o autor – como já afirmei – recheia cada célula destas grelhas com personagens que pretendem comprovar premissas muito especificas que o autor nos apresenta no início de cada narrativa. Cá está, mais uma vez, o rigor cientifico como matriz subjacente. E quais são essas premissas?
“Uma história são pessoas num lugar por algum tempo. (…) Pode contar-se uma história enchendo uma caixa vazia ou desenhando paredes à volta de gente.
Esta é uma história de portas dentro.” (Debaixo de Algum céu)
“Um quarto fechado é sempre uma história por contar, enquanto não o abrirem, cada um há-de ter a sua.” (Se eu fosse chão)
Se as premissas se verificam no final da observação, cabe ao leitor a sua avaliação. Já ao(s) narrador(es) cabe a presentação, o mais fiel possível, daquilo que lhes é dado ver, sem, no entanto, interferir no que observa. Idealmente. Porque também aos personagens é dada voz. Uma voz testemunha, uma voz que nos permite perceber um pouco mais a personagem que nos é apresentada. Apenas um pouco. O suficiente para que se corporizem na nossa mente. Para que deixem de ser linhas e passem a entidades reais.
A conclusão a que chego é que a obra de Nuno Camarneiro é dotada de diversas camadas. Algumas de fácil identificação, outras que percebemos existir, mas que não conseguimos apreender o alcance. Por isso, é uma obra que se presta a várias (re)leituras. Por agora, fica esta. 

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